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Como bons brasileiros, nós não conhecemos neve. Talvez alguns dias frios durante o inverno, um pouco de gelo pra quem viaja pra São Joaquim em Santa Catarina, ou férias de inverno em Bariloche pros mais abastados. Então é uma visão romântica da neve e do inverno.
Inverno é duro aqui. Muito duro. Começa a ficar frio por volta de meados de setembro e só volta a melhorar em meados de abril. Mas em alguns anos isso só aconteceu em julho (e também teve anos em que março estava bom). Então vivemos com as janelas fechadas por 5 ou 6 meses por ano. Janelas com vidro duplo, pra isolar o ambiente. Dentro de casa vivemos em confortáveis 21°-25° C dependendo dos radiadores e da casa. Em geral perto de 21° C.
Não bastasse o frio, uma das piores coisas aqui na europa nórdica é a escuridão. A foto acima do sol pondo-se foi feita por volta das 3 horas da tarde. Nessa época do ano o sol nasce depois das 8 da manhã. Hoje, dia 15 de janeiro, o sol nasce às 8:30 e põe-se às 3:24 da tarde. O ápice a escuridão é dia 21 de dezembro, e depois disso vai aumentando as horas de sol. 1 minuto mais ou menos por dia (em certo momento é bem mais, mas não vou entrar nesse assunto).
Nos primeiros anos recebemos isso como novidade e até adoramos. Afinal é novidade. Mas conforme o tempo vai passando, e isso vira sua rotina, começa a afetar você. Em geral levando à depressão. E esse é um dos maiores motivos de uso de antidepressivos aqui, do qual também sou usuário: regular o corpo com os ciclos de pouco sol no inverno e muito sol no verão. É bem comum encontrar pessoas que passam pelo problema de insônia, que é um dos efeitos disso. Durante o inverno, o isolamento em casa também vira uma norma. E isso traz ainda o que é conhecido como S.A.D., Seasonal Affective Disorder, que é uma forma de depressão.
Esse ano a cervejaria BrewDog fez uma campanha de cerveja pra ajudar as pessoas que sofrem de S.A.D. de tão grave e comum que isso é na europa como um todo (talvez não tanto na parte sul como Grécia, Itália e Portugal). Os lucros arrecadados serão destinados ao tratamento dessa desordem e doenças mentais.
https://www.brewdog.com/uk/iamwhole
A primeira coisa que temos que fazer pra combater o S.A.D. é aumentar a dose de vitamina D, aquela que conseguimos pelo sol. Aqui é item obrigatório entre meados de setembro até meados de março ou até mesmo abril. Adultos e crianças. Mas mesmo não tendo S.A.D., os efeitos do pouco sol fazem-se sentir logo mesmo com a vitamina D extra: cabelos caindo e unhas quebrando. Mesmo os animais de estimação perdem bastante pelos durante o inverno, a ponto de eu achar que consegueria montar um gato a mais por mês com tanto pelo que o roomba coletava (roomba, o robôzinho que varre o chão).
Além do pouco sol, insônia, cabelos caindo, unhas quebrando ainda existe um outro problema com o inverno que é a pele. A pele sofre e muito com o clima frio, que é muito seco. Então uma das coisas que temos de abandonar aqui até certo ponto é banho. É comum ouvir falar de gente que foi ao médico ver uma irritação na pele que estava ficando vermelha, meio esfolada, e o médico perguntar "está tomando banho todo dia?". A água aqui tem muito calcário, tanto que deixa umas manchas brancas por onde seca. Essa mesma água usada diariamente vai deixando a pele cada vez mais seca. Ao ponto de exigir usar cremes hidratantes.
Eu costumo ou usar esse creme, que não tem cheiro e é bom pra quem é alérgico a quase tudo como eu, ou uso um Dove cream shower após tomar banho. E tem quem tome até dois banhos por dia e não tenha esses problemas de pele. Mas quem não cuida e insiste pode desenvolver o que é conhecido como "alergia ao inverno", que é o pior ponto onde pode-se chegar. Essa alergia é uma eczema da pele que fica irritada com qualquer coisa sintética. Então imagine como é terrível enfrentar de 5 a 6 meses de inverno sem poder usar uma jaqueta. E o uso de roupas de algodão, que é a única coisa possível de usar quando se está com a pele assim, têm o incoveniente de perder muito calor. Ao suar, a roupa de algodão fica molhada e não seca, tanto que não é recomendado seu uso.
Então parte do ritual de enfrentar um inverno tão longo é acostumar a usar roupas que permitam que sue, mas o suor fique isolado fora do corpo e ainda assim te mantenham aquecido. Por conta disso as roupas de inverno não cheiram lá muito bem pra narizes recém chegados. Claro que com o tempo a gente acostuma.
Só uma curiosidade sobre os próprios suecos. Como eu costumava ir trabalhar de bicicleta mesmo durante o inverno, claro que dividi vestiário com vários colegas e pude notar seus hábitos quanto ao banho. Existiam alguns que só se enxugavam o suor e colocavam a roupa de trabalho (porque aqui tem de usar uma roupa própria pra pedalar durante o inverno), mas a grande maioria tomava o "banho sueco" que é basicamente entrar no chuveiro e só passar um água rápida. Menos de 5 minutos. Sem sabão. Sim, deixar a pele oleosa. Isso ajuda a pele a sobreviver à rotina do inverno.
Eu comentei acima que dentro de casa as temperaturas são de 21 à 25°C. Recomendam então usar pouca ou nenhuma roupa dentro de casa pra justamente a pele respirar. Por isso é tão comum ver gente andando pelada nos apartamentos no centro da cidade. No começo você acha engraçado e fica um pouco envergonhado com isso, mas depois de um tempo você vira mais um dos pelados andando pela casa.
Mas e a parte legal, de esquiar, patinar no gelo, bonecos de neve, etc?
Claro que isso existe. E é bem divertido. Mas em geral só é possível um ou dois dias depois que nevou, ou em alguns parques enquanto a temperatura ficar abaixo de zero e não tiver muito sol, o que é comum durante o inverno. Nos locais de muita circulação a neve vira uma lama que suja tudo por onde se anda (e daí o hábito na Suécia de não se usar sapatos dentro de casa, nem as visitas).
Esquiar já é algo diferente. Eu nunca fiz, mas as estações de esqui ficam em sua maioria em locais onde a neve cai o ano inteiro. Então é mais ou menos ter vontade de ir lá fazer. Eu até hoje não fui, mas algum dia tento. Quero experimentar o snowboard.
A neve dá uma alegrada na escuridão nórdica, mas por outro lado cria o problema de que escorrega. E muito. O sol bate na neve, que reflete a luz e aumenta a troca de calor. A parte de cima da neve esquenta e derrete. Mas assim que o sol se vai, essa parte de cima congela novamente e vira gelo. Uma área gigantesca de gelo. E no escuro. Os carros e mesmo as bicicletas aqui usam pneus de inverno, que em geral têm cravos de metal pra segurar nesse gelo. Mas não os sapatos. Aliás até tem umas garras que podem adaptar nos sapatos pra andar no gelo, mas é complicado andar com aquilo por aí. Se for ao mercado por exemplo, na rua estará super seguro de escorregar no gelo mas ao entrar no mercado o piso liso vai fazer você escorregar. Então não é algo muito prático pra se usar durante todo o inverno. Talvez pra uma caminhada nos bosques. Então durante o inverno é comum as pessoas caírem e quebrarem braços, pernas, pulsos, etc. Imagine você ter caído num inverno e quebrado a perna? E imagine o medo de acontecer de novo. E ter 6 meses de inverno todo ano.
Em lugares mais urbanos como o centro da cidade é comum passar um tratorzinho nas calçadas limpando a neve e o gelo. O mesmo acontece nas ruas e vias de bicicletas. Claro que eles não limpam o tempo todo. Vez ou outra, numa tempestade forte de neve, fica tudo coberto de neve, que é onde fica o perigo de escorregar e cair. Outro perigo é a neve ou gelo acumulado nos telhados de prédios. Existe o risco de um pedaço grande cair na sua cabeça, assim como aqueles pingentes de gelo que ficam nas beiradas. A recomendação é não andar perto das paredes pra evitar isso. Mas todo ano morrem pessoas assim.
E a roupa de inverno? Todos os lugares onde frequentamos têm aquecimento, e por isso não usamos tanta roupa pra segurar o frio como no Brasil. Geralmente uma boa jaqueta basta. Só que essa jaqueta será seu melhor companheiro por 6 meses por ano. Bom... talvez nem tanto. Frio mesmo faz normalmente em janeiro e em fevereiro. Então digamos de 2 a 3 meses. Mas nos outros meses está frio, abaixo de 10°C. Enquanto uma boa jaqueta dá conta do recado, a maioria tem jaquetas de meia estação, que é também meu caso. São jaquetas que aguentam bem até uns -1 ou -2 °C. Abaixo disso, daí sim a jaqueta de inverno. E não dá pra lavar essa jaqueta a cada uso porque ainda mais no inverno não vai secar tão rápido e sair com jaqueta úmida por dentro não é lá uma boa ideia. Lembram que comentei do cheiro da roupa aqui? Pois é...
Aqui é comum ter muitas promoções boas de roupa de inverno no começo da primavera, por volta de março e abril. Foi quando comprei essa jaqueta da foto. Meu único arrependimento dessa jaqueta foi ter escolhido o branco. Agora ela está toda encardida e não tem jeito de tirar.
Quando cheguei do Brasil eu sentia muito frio em temperaturas de 5°C pra baixo. Eu usava uma camada a mais de roupa, a tal segunda pele ou camada básica. Essa é uma malha a mais de algodão ou sintética, que ao contrário da roupa pra exercício pode ser de algodão (desde que não sue muito nela). Depois de alguns anos morando aqui eu já não uso tanto até temperaturas até -5°C. Só a calça jeans já tá bom o suficiente. Mas isso também depende de quanto tempo estarei fora de casa. Se for pra como por exemplo andar até à praia, onde tirei a foto do início do artigo, com certeza uso sim. São uns bons 30 a 40 minutos de caminhada na neve até chegar lá. E a calça jeans só não segura o frio assim por tanto tempo. Pra ir pro trabalho de transporte público? Só a calça jeans mesmo.
Vendo essa perspectiva de como funciona a vida no inverno aqui, acho que fica claro o motivo do Linus Torvalds ter criado um kernel. É o que se tem pra fazer aqui durante o inverno. Eu tento passar o tempo fazendo pizzas, pães, e cerveja. Jogando PlayStation com os amigos e atualizando aqui o blog. Mas mesmo assim... o inverno é longo. Não acho que consigo criar um kernel, mas tenho feito muitas outras coisa. E dá pra entender o porquê do R. R. Martin usar a Suécia como referência em seus livro do game of thrones. Aqui a gente sempre sabe que o inverno está chegando...
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