Se chegou aqui e ainda não leu os outros artigos, então pare e leia agora:
Peço desculpas pelo último artigo sobre o inverno. Mas depois de alguns anos vivendo no frio, gelo e escuridão, eu já estou parecido com o argentino no Canadá. Exceto que não cai pra quebrar nenhum osso ainda, nem bati carro na neve e muito menos penso em voltar pro Brasil.
Eu larguei meu rant sobre o inverno e não comentei de algumas coisas loucas que já fiz aqui nessa época do ano. Teve uma vez que caiu uma tempestade de neve que era prevista ser a pior da última década. Era tipo uma confluência de tempestades de neve juntas com mais uma frente fria chegando e tudo mais. Era algo como o dia que até o inferno congelaria. Chamaram carinhosamente de "a besta do leste", the beast of East.
Sabendo das notícias, eu e meus colegas combinamos de trabalhar no tal dia remotamente. E o que aconteceu? Nada. Não nevou. Ficou tudo ok. Então durante aquele dia decidimos todos ir pra empresa no dia seguinte.
E eu fui de bicicleta.
Só que a tal mega tempestade de neve pegou algum congestionamento na Alemanha e chegou no dia seguinte. E com força. Eu por acaso consegui registrar muita coisa.
Foi até engraçado, mas o ruim foi que nevou muito. Demais. Carros foram soterrados na neve. Quem estava na empresa saiu por volta das 10 horas da manhã porque os carros estavam desaparecendo na neve. E quem saiu nesse horário ficou preso num mega congestionamento, porque estava intransitável. E eu com a minha magrela.
O esforço de pedalar na neve é parecido com o de pedalar em areia fofa (chuto que seja porque nunca tentei andar de bicicleta na praia, mas andando é a mesma sensação, então deve ser também parecido). Cansa. Cada 2 ou 3 pedaladas que eu dava, andava meia pedalada. Mas eu sobrevivi. Fui e voltei ao trabalho numa das piores tempestades de neve dos últimos tempos.
Só que de noite, enquanto eu dormia, simplesmente tive câimbras nas duas batatas das pernas. Eu lá, dormindo e babando, e de repente eu pulo (e caio) da cama gritando de dor com as duas pernas travadas. Dizem que maratonistas novatos têm esse tipo de reação depois do esforço extremo da corrida. Eu precisei trabalhar o restante da semana de casa porque nem andar eu conseguia direito.
Foi louco, mas eu fiz. Acho que maratonistas também sentem a mesma coisa. Tanto de adrenalina e sentido de superação quanto as câimbras. Não sei se faria novamente. Mas como estamos todos em casa por conta da pandemia, então não preciso pensar muito nisso.
E agora um fato que aconteceu esses dias e tirei uma foto pra registrar.
É a mesma foto que abri esse artigo, digo, o mesmo lugar, mas repare nas crianças na plataforma.
Eu esqueci de dizer nos artigos anteriores que as escolas levam as crianças pra excursão usando o transporte público. A pessoa mais na frente é a professora ou professor. E de manhã é bem comum ver um monte de alunos na plataforma do metrô. Em alguns casos eles vão à biblioteca do bairro, que fica a uma estação dessa, em outras vão visitar museus. Sim, museus. Os museus aqui na Suécia, e principalmente em Estocolmo que tem muitos, é um lugar de diversão pras crianças. Eles têm geralmente um parque indoor temático, relacionado à exposição do museu, onde as crianças podem brincar e aprender.
As fotos a seguir são das partes pras crianças brincarem no tekniska museet, museu de tecnologia. O mesmo onde está o primeiro servidor do piratebay.
E enquanto as crianças estão entrando ou saindo do trem do metrô, o maquinista espera. A última pessoa a entrar e sair é o professor. Quando a turma é muito nova, como jardim da infância, eles vão em 2 professores ou então duas turmas de crianças com 4 professores. E sempre tem um que sai ou entra por último e faz sinal pro maquinista que está ok pra ir. E só então o trem fecha as portas e segue. É algo tão, mas tão, mas tão comum aqui que eu esqueci de escrever sobre isso antes.
E agora algo sobre mulheres e maquiagem.
Essa revista chegou hoje. Essa é a típica mulher sueca aqui. Não só pelos olhos azuis e cabelo loiro, mas pela pouca maquiagem. E não existem nenhuma sensualização dela na foto. E apenas ela sendo ela. E confesso que depois de um tempo aqui, passando por essa desintoxicação quanto ao marketing brasileiro e objetificação feminina, eu já acho hoje em dia as propagandas que vejo do Brasil com algo bem vulgar.
E é isso. Guardar energia pra escrever mais na semana que vem. Que com certeza terá mais frio, mas já menos escuridão.
Já é possível ver como melhorou muito o tempo aqui. Peço perdão pelo sarcasmo.
UPDATE 2022-01-22: algumas fotos de como realmente fica tudo em volta durante o inverno, sem o romantismo das bolas de neves. Parte da sujeira é por causa da areia, mostrada numa das fotos, que serve pra dar um pouco de atrito no gelo e tentar ajudar a não escorregar tanto. Mas boa parte do que se vê são os "icepacks", pacotes de gelo. Neve que derreteu e congelou de novo. Tirei as fotos hoje durante minha ida ao restaurante próximo pra comprar o almoço.
Se ainda não leu os artigos anteriores:
Como bons brasileiros, nós não conhecemos neve. Talvez alguns dias frios durante o inverno, um pouco de gelo pra quem viaja pra São Joaquim em Santa Catarina, ou férias de inverno em Bariloche pros mais abastados. Então é uma visão romântica da neve e do inverno.
Inverno é duro aqui. Muito duro. Começa a ficar frio por volta de meados de setembro e só volta a melhorar em meados de abril. Mas em alguns anos isso só aconteceu em julho (e também teve anos em que março estava bom). Então vivemos com as janelas fechadas por 5 ou 6 meses por ano. Janelas com vidro duplo, pra isolar o ambiente. Dentro de casa vivemos em confortáveis 21°-25° C dependendo dos radiadores e da casa. Em geral perto de 21° C.
Não bastasse o frio, uma das piores coisas aqui na europa nórdica é a escuridão. A foto acima do sol pondo-se foi feita por volta das 3 horas da tarde. Nessa época do ano o sol nasce depois das 8 da manhã. Hoje, dia 15 de janeiro, o sol nasce às 8:30 e põe-se às 3:24 da tarde. O ápice a escuridão é dia 21 de dezembro, e depois disso vai aumentando as horas de sol. 1 minuto mais ou menos por dia (em certo momento é bem mais, mas não vou entrar nesse assunto).
Nos primeiros anos recebemos isso como novidade e até adoramos. Afinal é novidade. Mas conforme o tempo vai passando, e isso vira sua rotina, começa a afetar você. Em geral levando à depressão. E esse é um dos maiores motivos de uso de antidepressivos aqui, do qual também sou usuário: regular o corpo com os ciclos de pouco sol no inverno e muito sol no verão. É bem comum encontrar pessoas que passam pelo problema de insônia, que é um dos efeitos disso. Durante o inverno, o isolamento em casa também vira uma norma. E isso traz ainda o que é conhecido como S.A.D., Seasonal Affective Disorder, que é uma forma de depressão.
Esse ano a cervejaria BrewDog fez uma campanha de cerveja pra ajudar as pessoas que sofrem de S.A.D. de tão grave e comum que isso é na europa como um todo (talvez não tanto na parte sul como Grécia, Itália e Portugal). Os lucros arrecadados serão destinados ao tratamento dessa desordem e doenças mentais.
https://www.brewdog.com/uk/iamwhole
A primeira coisa que temos que fazer pra combater o S.A.D. é aumentar a dose de vitamina D, aquela que conseguimos pelo sol. Aqui é item obrigatório entre meados de setembro até meados de março ou até mesmo abril. Adultos e crianças. Mas mesmo não tendo S.A.D., os efeitos do pouco sol fazem-se sentir logo mesmo com a vitamina D extra: cabelos caindo e unhas quebrando. Mesmo os animais de estimação perdem bastante pelos durante o inverno, a ponto de eu achar que consegueria montar um gato a mais por mês com tanto pelo que o roomba coletava (roomba, o robôzinho que varre o chão).
Além do pouco sol, insônia, cabelos caindo, unhas quebrando ainda existe um outro problema com o inverno que é a pele. A pele sofre e muito com o clima frio, que é muito seco. Então uma das coisas que temos de abandonar aqui até certo ponto é banho. É comum ouvir falar de gente que foi ao médico ver uma irritação na pele que estava ficando vermelha, meio esfolada, e o médico perguntar "está tomando banho todo dia?". A água aqui tem muito calcário, tanto que deixa umas manchas brancas por onde seca. Essa mesma água usada diariamente vai deixando a pele cada vez mais seca. Ao ponto de exigir usar cremes hidratantes.
Eu costumo ou usar esse creme, que não tem cheiro e é bom pra quem é alérgico a quase tudo como eu, ou uso um Dove cream shower após tomar banho. E tem quem tome até dois banhos por dia e não tenha esses problemas de pele. Mas quem não cuida e insiste pode desenvolver o que é conhecido como "alergia ao inverno", que é o pior ponto onde pode-se chegar. Essa alergia é uma eczema da pele que fica irritada com qualquer coisa sintética. Então imagine como é terrível enfrentar de 5 a 6 meses de inverno sem poder usar uma jaqueta. E o uso de roupas de algodão, que é a única coisa possível de usar quando se está com a pele assim, têm o incoveniente de perder muito calor. Ao suar, a roupa de algodão fica molhada e não seca, tanto que não é recomendado seu uso.
Então parte do ritual de enfrentar um inverno tão longo é acostumar a usar roupas que permitam que sue, mas o suor fique isolado fora do corpo e ainda assim te mantenham aquecido. Por conta disso as roupas de inverno não cheiram lá muito bem pra narizes recém chegados. Claro que com o tempo a gente acostuma.
Só uma curiosidade sobre os próprios suecos. Como eu costumava ir trabalhar de bicicleta mesmo durante o inverno, claro que dividi vestiário com vários colegas e pude notar seus hábitos quanto ao banho. Existiam alguns que só se enxugavam o suor e colocavam a roupa de trabalho (porque aqui tem de usar uma roupa própria pra pedalar durante o inverno), mas a grande maioria tomava o "banho sueco" que é basicamente entrar no chuveiro e só passar um água rápida. Menos de 5 minutos. Sem sabão. Sim, deixar a pele oleosa. Isso ajuda a pele a sobreviver à rotina do inverno.
Eu comentei acima que dentro de casa as temperaturas são de 21 à 25°C. Recomendam então usar pouca ou nenhuma roupa dentro de casa pra justamente a pele respirar. Por isso é tão comum ver gente andando pelada nos apartamentos no centro da cidade. No começo você acha engraçado e fica um pouco envergonhado com isso, mas depois de um tempo você vira mais um dos pelados andando pela casa.
Mas e a parte legal, de esquiar, patinar no gelo, bonecos de neve, etc?
Claro que isso existe. E é bem divertido. Mas em geral só é possível um ou dois dias depois que nevou, ou em alguns parques enquanto a temperatura ficar abaixo de zero e não tiver muito sol, o que é comum durante o inverno. Nos locais de muita circulação a neve vira uma lama que suja tudo por onde se anda (e daí o hábito na Suécia de não se usar sapatos dentro de casa, nem as visitas).
Esquiar já é algo diferente. Eu nunca fiz, mas as estações de esqui ficam em sua maioria em locais onde a neve cai o ano inteiro. Então é mais ou menos ter vontade de ir lá fazer. Eu até hoje não fui, mas algum dia tento. Quero experimentar o snowboard.
A neve dá uma alegrada na escuridão nórdica, mas por outro lado cria o problema de que escorrega. E muito. O sol bate na neve, que reflete a luz e aumenta a troca de calor. A parte de cima da neve esquenta e derrete. Mas assim que o sol se vai, essa parte de cima congela novamente e vira gelo. Uma área gigantesca de gelo. E no escuro. Os carros e mesmo as bicicletas aqui usam pneus de inverno, que em geral têm cravos de metal pra segurar nesse gelo. Mas não os sapatos. Aliás até tem umas garras que podem adaptar nos sapatos pra andar no gelo, mas é complicado andar com aquilo por aí. Se for ao mercado por exemplo, na rua estará super seguro de escorregar no gelo mas ao entrar no mercado o piso liso vai fazer você escorregar. Então não é algo muito prático pra se usar durante todo o inverno. Talvez pra uma caminhada nos bosques. Então durante o inverno é comum as pessoas caírem e quebrarem braços, pernas, pulsos, etc. Imagine você ter caído num inverno e quebrado a perna? E imagine o medo de acontecer de novo. E ter 6 meses de inverno todo ano.
Em lugares mais urbanos como o centro da cidade é comum passar um tratorzinho nas calçadas limpando a neve e o gelo. O mesmo acontece nas ruas e vias de bicicletas. Claro que eles não limpam o tempo todo. Vez ou outra, numa tempestade forte de neve, fica tudo coberto de neve, que é onde fica o perigo de escorregar e cair. Outro perigo é a neve ou gelo acumulado nos telhados de prédios. Existe o risco de um pedaço grande cair na sua cabeça, assim como aqueles pingentes de gelo que ficam nas beiradas. A recomendação é não andar perto das paredes pra evitar isso. Mas todo ano morrem pessoas assim.
E a roupa de inverno? Todos os lugares onde frequentamos têm aquecimento, e por isso não usamos tanta roupa pra segurar o frio como no Brasil. Geralmente uma boa jaqueta basta. Só que essa jaqueta será seu melhor companheiro por 6 meses por ano. Bom... talvez nem tanto. Frio mesmo faz normalmente em janeiro e em fevereiro. Então digamos de 2 a 3 meses. Mas nos outros meses está frio, abaixo de 10°C. Enquanto uma boa jaqueta dá conta do recado, a maioria tem jaquetas de meia estação, que é também meu caso. São jaquetas que aguentam bem até uns -1 ou -2 °C. Abaixo disso, daí sim a jaqueta de inverno. E não dá pra lavar essa jaqueta a cada uso porque ainda mais no inverno não vai secar tão rápido e sair com jaqueta úmida por dentro não é lá uma boa ideia. Lembram que comentei do cheiro da roupa aqui? Pois é...
Aqui é comum ter muitas promoções boas de roupa de inverno no começo da primavera, por volta de março e abril. Foi quando comprei essa jaqueta da foto. Meu único arrependimento dessa jaqueta foi ter escolhido o branco. Agora ela está toda encardida e não tem jeito de tirar.
Quando cheguei do Brasil eu sentia muito frio em temperaturas de 5°C pra baixo. Eu usava uma camada a mais de roupa, a tal segunda pele ou camada básica. Essa é uma malha a mais de algodão ou sintética, que ao contrário da roupa pra exercício pode ser de algodão (desde que não sue muito nela). Depois de alguns anos morando aqui eu já não uso tanto até temperaturas até -5°C. Só a calça jeans já tá bom o suficiente. Mas isso também depende de quanto tempo estarei fora de casa. Se for pra como por exemplo andar até à praia, onde tirei a foto do início do artigo, com certeza uso sim. São uns bons 30 a 40 minutos de caminhada na neve até chegar lá. E a calça jeans só não segura o frio assim por tanto tempo. Pra ir pro trabalho de transporte público? Só a calça jeans mesmo.
Vendo essa perspectiva de como funciona a vida no inverno aqui, acho que fica claro o motivo do Linus Torvalds ter criado um kernel. É o que se tem pra fazer aqui durante o inverno. Eu tento passar o tempo fazendo pizzas, pães, e cerveja. Jogando PlayStation com os amigos e atualizando aqui o blog. Mas mesmo assim... o inverno é longo. Não acho que consigo criar um kernel, mas tenho feito muitas outras coisa. E dá pra entender o porquê do R. R. Martin usar a Suécia como referência em seus livro do game of thrones. Aqui a gente sempre sabe que o inverno está chegando...
We use cookies on our website. Some of them are essential for the operation of the site, while others help us to improve this site and the user experience (tracking cookies). You can decide for yourself whether you want to allow cookies or not. Please note that if you reject them, you may not be able to use all the functionalities of the site.