*Nota: esse artigo foi originalmente escrito pra Revista Espírito Livre, mas como a edição não saiu estou postando aqui.

 

30 anos de Linux

Olá leitores da Revista Espírito Livre. Eu venho do futuro pra falar sobre os 30 anos de Linux. Futuro muitos anos à frente? Sinto mas estou apenas algumas horas adiantado devido ao timezone em que vivo. Mas tenho um certo prazer em dizer que celebrei a chegada do ano novo antes que todo mundo no Brasil, e avisando o que os aguarda do futuro (geralmente nada). E vamos ser sinceros: no mundo de hoje com tanta gente acreditando em terra plana, rejeitando vacinas e tomando cloroquina, dizer que venho do futuro é até uma licença poética aceitável.

Mas vamos voltar ao assunto do artigo: Linux. E seus 30 anos de vida. Foi uma comemoração bem moderada, sem grandes festas, sem bolo pra comemorar, e nenhuma meetup organizada. Ao menos por aqui. Talvez a culpa fosse da pandemia. Talvez fosse porque Linux já é tão comum e seu uso é diário, o que não nos faz mais sentir que seu aniversário é uma data especial. Mas são 30 anos desde que um estudante finlandês tentou escrever um minix melhor que o minix, um sistema operacional Unix para estudantes, e achou que nunca seria tão grande quanto o projeto GNU.

Não, não vou entrar na polêmica de quem é maior que quem entre GNU e Linux. Ambos têm seus méritos e são gigantes. E não estaríamos onde estamos sem eles. O projeto GNU já completou 38 anos também no dia 27 de setembro, mas o artigo é sobre Linux. Então deixo meus parabéns ao projeto GNU mas tenho de dizer que mesmo o sistema operacional mais comum que usamos pelas distros sendo um GNU/Linux, é Linux que o chamamos. Isso começou desde muito tempo atrás e duvido que mude algum dia. Alguns podem insistir em chamar de GNU/Linux, mas se até mesmo o Debian mudou de Debian GNU/Linux pra simplesmente Debian, que diremos de Linux além, é claro, de apenas Linux? Nomes curtos têm tendência a ficar melhores e as pessoas relacionam-se com isso mais facilmente.

Senta que lá vem história

Parte dessa tradição de denominação veio como herança de como eram os sistemas Unix nos princípios dos tempos, ou anos 70 em Unix time. Primeiro existiu o Unix da AT&T, em seguida surgiu uma melhoria desse que ficou conhecida como BSD, de Berkeley. E assim foi por quase 10 anos. O Unix BSD era basicamente o mesmo Unix, mas com drivers, ferramentas, scripts e até sistema de boot de Berkeley. E era o sistema operacional completo, com kernel, bibliotecas, editores, shell, etc. Mesmo os sistemas que surgiram da compra da licença do Unix da AT&T, como SunOS da Sun – atual Oracle, eram sistemas operacionais completos mas com nomes curtos como SunOS, HP-UX, SCO, Xenix, etc.

Quando o bom doutor, Richard Stallman, teve a epifania de criar um sistema operacional totalmente livre, o sistema operacional GNU – pra poder dizer que GNU não era Unix (GNU is Not Unix), nunca pensou em criar tudo de forma coesa. Ele começou da forma simples e em partes. Primeiro as ferramentas: editor (se bem que emacs é mais uma religião que editor mas isso é assunto pra outro artigo bem mais longo que esse), compilador, shell, etc.  Mas tudo era separado em seu repositório e era necessário baixar os fontes e compilar sua versão usável. Então nunca houve uma identidade de sistema operacional GNU.  Era a biblioteca sunsite com ferramentas GNU. Até surgir o Linux e permitir criar um sistema  operacional completo. Claro que pra isso foram necessários os surgimentos das distros, um encurtamento para distribuições, que empacotavam o Linux com GNU e distribuíam como sistema operacional.

E Linux nasceu como um kernel, como já descrevi antes no “um minix melhor que o minix”, mesmo que Tannenbaum discordasse disso, e cresceu tanto em linhas quanto em contribuidores e até mesmo em ecossistema. Hoje em dia Linux é um projeto, uma fundação. E abrange de redes à containers com OCI, Open Container Iniciative. E apesar de ter nascido pra rodar software da GNU como bash e ser compilado com GCC, hoje em dia já roda em sistemas sem nada da GNU como Alpine e Android. E compila com o llvm. Não totalmente como com GCC, mas é um trabalho em andamento e deve em algum momento tornar o Linux compilável com qualquer compilador C. Isso sem comentar o suporte à linguagem rust, que poderá talvez nos próximo 10 anos virar boa parte do código do kernel. Talvez até a maior parte dele. Quem sabe?

As distros Linux

Desses 30 anos eu já comentei sobre os surgimento das distros. Falta escrever sobre o desaparecimento delas. Atualmente o site distrowatch, famoso por enumerar as distros que surgiam, parece mais um obituário. A grande maioria das distros que surgiram também sumiram. Não que alguém vá sentir falta da Bieber Linux ou da Hanna Montana Linux, mas sei de gente que até hoje chora a perda do – um momento pra respirar e segurar a náusea – kurumin. A maioria dessas distros recebeu a alcunha carinhosa no Brasil de REFISEFUQUIs. Aqui peço a ajuda ao amigo Fábio Benedito pra descrever o que são:

As REFISEQUIs mostraram um lado interessante sobre a liberdade do software livre: cada um podia e ainda pode fazer um fork de alguma distro e criar a sua própria. Ao contrário das distros que contavam com legiões de voluntários ou funcionários, dependendo se fossem empresas ou projetos voluntários como Fedora e Debian, as REFISEFUQUIs eram batalhas de um soldado só. Talvez dois. Mas não muito mais que isso. Conseguiam fazer o primeiro release, o segundo, então o... o... o... acabava o gás. Talvez algumas tenham ido um pouco mais longe que isso, mas ninguém sobrevive ao tempo sem organização e principalmente mãos pra ajudar a manter tudo funcionando. Talvez o propósito fosse somente ter seu sistema listado na distrowatch. Nesse caso tenho de admitir que a missão foi cumprida. Amigos, amigos, negócios à parte.

E o que dizer das empresas? Nesses 30 anos muitas delas surgiram pra levar o Linux pra todos como principal sistema operacional do desktop. Inclusive com a versão tupiniquim com a Conectiva. E eram muitas. Infelizmente o cenário atual conta com apenas algumas delas. As que não faliram sofreram um processo de compra ou fusão. E eventualmente faliram. Talvez a venda de software gratuito não fosse tão bom negócio assim? A venda da Red Hat pra IBM por mais de 34 bilhões de dólares dizem o contrário. O que faltou então? Talvez menos geeks programadores e mais pessoas de negócios gerenciando a empresa? Talvez. A verdade é que muita coisa foi feita sem muito planejamento e só imaginando bastasse o software ter licença GPL ou qualquer outra livre e seria o suficiente pra empresa sobreviver. Infelizmente a realidade mostrou que não era bem isso.

E não só de dramas empresariais viveu o Linux nesses 30 anos. Teve também o caso da vira-casaca Caldera Open Linux, que comprou o que sobrou da SCO e aplicou um processo por roubo de propriedade intelectual contra o Linux. O caso ficou anos num tribunal e finalmente teve um fim. Os gestores da massa falida da empresa, que por motivos óbvios não conseguiu sobreviver no negócio, fechou um acordo muito bom de mais de 14 milhões de dólares com a... IBM!? Não me perguntem o porquê da IBM ter sido envolvida em suposto roubo de propriedade intelectual do Linux, mas no fim ela comprou o que sobrou de patentes e propriedade intelectual e encerrou o assunto.

Dramas policiais

Outro caso de tribunal nesses 30 anos de Linux que ficou muito famoso foi a prisão de Hans Reiser, criador do filesystem reiserfs, um dos primeiros filesystems com journaling no Linux e que eu pessoalmente cheguei a usar, acusado de assassinato. Não que sua prisão tenha alguma relação com Linux. Pelo contrário. Mas foi algo que impactou a direção dos filesystems em Linux, que estavam em suas infâncias no mundo journalling. Depois de sua prisão eu fui movido por, digamos, forças superiores a usar o XFS que foi doado pela SGI ao Linux. E até hoje é meu filesystem predileto, junto com LVM.

Código de conduta

Outro drama vivido na lista do kernel durante esses 30 anos foi o eventual sumisso do próprio Linus Torvalds seguido da introdução de um código de conduta,vonde ele mesmo aceitava que tinha um comportamento tóxico e que precisa fazer terapia para endereçar seus problemas de uma melhor maneira. Não faltou gritaria em relação ao código de conduta com ataques dizendo que o mesmo iria coibir a participação das pessoas no desenvolvimento do kernel. Atualmente ninguém questiona o quão benéfico foi esse código de conduta, assim como quão tarde veio a ser adotado. E, claro, ainda há quem diga que ele motivou muita gente a não participar mais do desenvolvimento. Quantos? Esse será um dado que nunca veremos.

Batalha dos inits

E ao longo desses 30 anos do Linux vimos também a grande batalha dos sistemas de inits, onde systemd saiu como vencedor e upstart virou lembrança. De todos os males ditos sobre o systemd na época, poucos realmente aconteceram, se é que aconteceram. E justiça seja feita: systemd é muito, mas muito mais que um mero sistema de init.

Claro que algumas distros seguem longe do systemd, como se isso fosse algum certificado de pureza. Mas nada que abale a realidade de que systemd funciona, vai muito bem obrigado, e trouxe flexibilidade e robustez ao Linux. Se antes precisávamos de gambiarras pra monitorar se um daemon não tinha dado crash e fechado inesperadamente, agora apenas temos o systemd lá monitorando e garantindo tudo funcionando. Ou quase. Claro que aparecem uns problemas aqui e ali, mas nada que negue o fato de que systemd melhorou muito a forma de como Linux tem seus daemons rodando.

crond? Coisa do passado. systemd tem agendamento de tarefas e substitui completamente o crond, que por sua vez poderia ter um crash e simplesmente parar de funcionar. E não para por aí o canivete suíço de funcionalidades do systemd.

Linux nos games

E nesses anos vimos como Linux chegou ao mundo dos games. Primeiramente de forma modesta com jogos portados pela Loki games. Depois de um tempo de silêncio e de abandono, uma voltou triunfante com o suporte da Steam, a gigante de jogos digitais.

Mas mesmo a Steam passou por maus bocados. Sua estratégia de abraçar o Linux foi para fugir dos braços da Microsoft, que na época mudava sua visão sobre jogos com o Windows 8, tentando forçar os jogadores a usarem sua própria loja de jogos. Então pra ter massa de manobra e poder negociar, a Steam abraçou o Linux. E lançou seu próprio sistema operacional chamado SteamOS, baseado no Debian. E foi um sucesso. Ou quase isso.

A quantidade de jogadores em sistemas Linux chegou a dobrar de 1 para 2%. Mas não mais que isso. Apesar de todo o suporte, o uso nunca cresceu como esperado.

Mas foi o suficiente pra dar o que a Steam precisava: algo pra negociar e tempo. E com o tempo o CEO da Microsoft foi trocado, e por um que tanto declarou amar Linux, e abraçou definitivamente dentro da empresa, assim como provavelmente chegou num acordo com a Steam. E ficamos sem muitas novidades.

Isso até pouco tempo atrás, quando a Steam anunciou novamente algo bastante interessante: Steam deck. Basicamente um PC portátil com tela e controle conectados que permite jogar em qualquer lugar seu catálogo de jogos e... rufem os tambores... rodando Linux. Dessa vez a escolha foi o Arch Linux, a nova distro do pedaço que todo mundo ama. Eu incluso.

Essa nova estratégia da Steam muda seu foco de apenas ser uma plataforma digital de jogos pra vender console de jogos, competindo com Playstation, Xbox e Nintendo Switch. Por outro lado a maioria dos jogos continuaram não sendo nativos pra Linux, mas rodando através de um wine melhorado da própria Steam, o proton. Se chegou agora e não conhece o wine, esse é um software que faz uma tradução das chamadas de programas Windows para Linux. O resultado disso é a possibilidade de rodar programas feitos para Windows diretamente em Linux. E nisso acho que a mudança da Steam vai dar uma piorada pra jogos nativos em Linux. Que estúdio gastará tempo e pessoal pra fazer um jogo que rode em Linux quando pode fazer em Windows, o que provavelmente já fazem, e apenas trabalhar pra rodar bem em proton? Então é uma vitória com um certo gosto amargo de derrota.

O ano do Linux no desktop

Todo os anos eu além de dizer que estou no futuro na virada do ano, também digo que o próximo ano será o ano do Linux no desktop. E isso já faz uns... 15 anos? Talvez mais. Tanto que sempre uso a famosa imagem/meme do nerd dizendo isso (que aliás nem sei quem é pra dar os devidos créditos).

E esse ano nunca chegou. Não da forma que eu imaginava pelo menos. Atualmente o laptop chromebook é um dos mais vendidos para área de educação tanto nos EUA quanto na Europa. O Brasil não entra na conta por ainda viver um bom atraso tecnológico, mas aqui na Suécia minha filha tem seu chromebook na escola pra pesquisar e fazer os exercícios escolares. Na Suécia não houve um lockdown como em outros países durante a pandemia, mas alunos do colegial pra cima foram solicitados pra estudarem de casa. E cada um levou seu chromebook pra isso. E isso aconteceu em vários outros países, não somente aqui.

Sem contar que muitos desktops e laptops foram trocados por tablets e smartphones. Eu mesmo leio bastante em meu tablet Android e passo as manhãs lendo as notícias no meu smartphone (que diga-se de passagem tem a tela tão grande que praticamente precisei comprar uma calça nova e experimentar antes se ele cabia no bolso), também Android. Então a realidade de desktop que esperávamos não é mais aquela de 15 ou 20 anos atrás. Virou uma realidade de cloud, nas nuvens.

Mesmo que, pra desgosto de alguns, cloud rode no computador dos outros, atualmente é impossível fugir dele. Assim como tablets, smartphones, smartTVs, raspberrypis e muitos outros dispositivos, o cloud roda baseado em Linux. Linux virou o senhor supremo de todas as áreas. De geladeiras a super computadores, sendo presença prepobderante na lista dos 500 mais rápidos super computadores do mundo, sendo liderado atualmente pelo Fugaku do Japão com 7.630.848 núcleos de CPU e impressionantes 537.212 teraflops por segundo de desempenho de pico. Nesse é possível jogar minecraft sem lag.

Mas a discussão é no desktop, aquele ambiente dominado pela Microsoft. Sim, esse mesmo. Estamos em 2021 e ainda hoje as pessoas sofrem com vulnerabilidades e malwares enviados por mail no sistema de Redmond. Praticamente o mesmo problema desde que lançaram o Windows 95. E as pessoas continuam usando mesmo assim. Então eu duvido que Linux consiga entrar nesse mercado onde vírus e ransomware já são tidos como coisas absolutamente normais do dia a dia. Ele ficará naqueles que gostam de ter um sistema melhor, mais rápido e mais seguro.

E a liberdade? Sim, existem aqueles que usarão pela liberdade. E talvez por outros motivos. Mas isso não é importante, mesmo que pra eles sejam. O importante é que usem.

E aqui deixo escrito a mensagem que sempre passei e que sempre indignou muita gente: usem software livre. Não percam tempo com política, liberdade, filosofia, etc. Apenas usem se não for seu caso ainda. Isso abrirá portas para você.

Gostou? Então não fique só na instalação de uma distro. Ou de várias. Linux e outros software livres são baseados em... software. Então entre de cabeça. Aprenda a programar usando shell scripts. Depois vá pra linguagens como perl, python e nodejs. E não pare aí. Entre de cabeça.

Ajude um projeto pois tanto Linux quanto todo o ecossistema de software livre ainda dependem de voluntários, que estão ali pra ajudar e aprender. Então participe. Faça parte. Tenho certeza não se arrependerá.

Finalmente deixo aqui meu viva ao Linux e seus 30 anos.

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