Não é um fenômeno recente.  Faz alguns anos que esse sintoma tem aparecido.  Mas não é no mundo todo.  Até o momento só vi isso vindo do Brasil, o mesmo país que pede pela volta dos militares ao poder com a chamada "intervenção militar no Brasil".  Temas distintos, modus operandi similar.

O princípio é "se não for como eu quero, então está errado".  Isso pode ser usado em qualquer âmbito: religião, futebol e até mesmo em... software livre!

Essa discussão em software livre já vem caminhando nessa direção faz algum tempo.  E sempre com extremismo.  Os pontos são sempre "se não for livre, então é outra coisa".  A moda do momento é chamar como "OSIsta", uma alusão pejorativa de quem usa ou endossa a iniciativa do "open source".  Notem novamente o "modus operandi": é preciso ter um nome, um label, um rótulo, algo pra classificar, desmerecer, pra fazer um dualismo, uma contra-posição.

Essa tendência repete-se nitidamente na política, como se verificou nas últimas eleições presidenciais.  Ao invés de um debate democrático, partiu-se pra um enfrentamento de "nós x eles".  No caso da política, de ambos os lados, e todos recheados de mentiras e números mágicos pra comprovar alguma coisa.  O ponto era sempre irrelevante, o importante era ter uma "torcida" contra e outra a favor.

Em software livre estamos na fase das "torcidas".  É um tal de "minha distro é melhor que a sua" e de "pra resolver esse problema, instale a distro tal".  Perdemos o saber, o conhecimento, o prazer técnico.  Voltamos à idade da pedra digital.  Batalhas épicas são travadas por causa de interfaces gráficas.  Ninguém mais liga se é possível instalar essa mesma interface em outra distro ou não.  Ajudar?  Escrever software?  Não, muito obrigado.

Comunidade de software livre

O que é uma comunidade?  A wikipedia, que é uma comunidade, nos ajuda a responder do ponto de vista sociológico:

Uma comunidade é um conjunto de pessoas que se organizam sob o mesmo conjunto de normas, geralmente vivem no mesmo local, sob o mesmo governo ou compartilham do mesmo legado cultural e histórico. Os estudantes que vivem no mesmo dormitório formam uma comunidade, assim como as pessoas que vivem no mesmo bairro, aldeia ou cidade. Fichter, 1967 em suas Definições para uso didático ressalta que uma palavra que é rodeada de significados múltiplos, requer uma cuidadosa definição técnica, ao que propõe: comunidade é um grupo territorial de indivíduos com relações recíprocas, que servem de meios comuns para lograr fins comuns.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Comunidade

São indivíduos reunidos por algo comum em buscar de reciprocidade pra chegar nos mesmos objetivos.  Isso significa que pra fazer parte de uma comunidade basta... participar!

E numa comunidade de software livre?  O que se espera de alguém que participe de software livre?  Pode parecer loucura minha, mas se espera que a pessoa faça... software!  E livre! Livre!  Que coisa doida, não é?

Claro que nem todos têm essa capacidade de escrever software.  Mas sempre podem colaborar como membros de um grupo, ou até vários.  Podem ajudar com traduções, escrevendo novos documentos de uso, compartilhando experiências em blogs, participando de grupos, fazendo eventos, palestrando, escrevendo relatórios de bugs e... eventualmente... escrevendo software!

Numa comunidade esse é o caminho do aprendizado, vai se crescendo conforme se participa e adquire mais maturidade.  Uma comunidade de software, seja livre ou não, não vive por muito tempo se ninguém se dispuser a escrever o software.  No caso de uma comunidade de software livre, temos de fazer sempre software, e livre.

E como define liberdade?  Como um software é livre?

Nisso o Richard Stallman já nos ajudou mostrando que pra um software ser livre, ele precisa atender as 4 liberdades.  Eu já tinha descrito no post "freesoftware e negócios", mas o faço novamente aqui:

  • A liberdade de executar o programa, para qualquer propósito (liberdade 0).
  • A liberdade de estudar como o programa funciona, e adaptá-lo às suas necessidades (liberdade 1). Para tanto, acesso ao código-fonte é um pré-requisito.
  • A liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar ao próximo (liberdade 2).
  • A liberdade de distribuir cópias de suas versões modificadas a outros (liberdade 3). Desta forma, você pode dar a toda comunidade a chance de beneficiar de suas mudanças. Para tanto, acesso ao código-fonte é um pré-requisito.

 Então pra fazer parte de uma comunidade de software livre, basta criar softwares partindo desse princípio básico.  E a licença?  Sempre depende de quem criou.  Alguns gostam da GPL (sendo que GPLv2 e GPLv3 são muito diferentes), já outros preferem BSD, ou Artistic License.  Eu uso uma no estilo da Artistic License, a BWL.

Veja que software livre não é algo que dá poder ao programador ou desenvolvedor, mas ao usuário, que pode usar o software como quiser e quando quiser.  Inclusive pra vender.  O desenvolvedor permite que qualquer um possa usar e melhorar seu software.

Foi esse tipo de liberdade que me atraiu pro software livre.  Não foi pra libertar um país de nenhum ditador, nem pra subverter a economia, muito menos pra derrotar o capitalismo.  Eu gostei da visão pragmática do software livre, onde todos têm acesso ao código fonte e podem melhorar o software.  Isso pra mim foi e ainda é liberdade.

Mas aparentemente não pra galerinha que gosta de rotular.  Software livre extrapolou os limites do software pra se tornar uma luta de classes.  Como ideologias econômicas temos o capitalismo, o socialismo, e agora o softwareliberalismo.  Não, não existe, mas para alguns, aparemente é o que é.

E como se define um líder numa comunidade?  Em geral é pela meritocracia.  Meritocracia de fazer polêmica?  Não, meu caro.  Deveria ser por ter passado por todos os estágios de uma comunidade de software livre.  Mas quantos que gritam pelas ruas pela "liberdade do software" realmente se encaixam nesse perfil?

 

Ubuntu, a bola da vez

Muitos desses "lutadores da liberdade", ou melhor, "gladiadores da liberdade" escolheram o Ubuntu como alvo.  Qual o motivo?  Duas respostas simples:

1) Ubuntu lidera o mercado de desktops Linux

2) Ubuntu não é uma distribuição criada por uma comunidade, mas por uma empresa, a Canonical

Então qual é o mais fácil de atacar?  Quem tem o menor número de usuários ou o maior?  Claro que o maior.  Por isso que Ubuntu é sempre escolhido como alvo preferido.  E enquanto mantiver essa liderança, continuará sendo.  Pra isso não importa se trouxeram mais usuários pra Linux, se mantém um portal pra correções de bugs ou que façam doações de mídia de instalação gratuitas.  É corporativo, é do mal.  O que antes era ocupado pela Microsoft como visão de antagonismo, agora é a Canonical com seu Ubuntu.  É sempre preciso ter um inimigo pra lutar contra.

Os problemas citados?  Vou apenas comentar um: Ubuntu "monitora seus usuários".  A Canonical, mais uma vez como empresa, decidiu monetizar o Ubuntu utilizando as "lentes" de seu ambiente desktop pra fazer buscas na Amazon e assim conseguir algum financiamento com essas buscas.  O mesmíssimo mecanismo usado por... FIREFOX!  Sim, o browser Firefox.  Quando se faz a pesquisa na caixa de pesquisas do browser, ele envia ou pra Google ou pra Yahoo, pra monetizar o projeto e assim poder financiar seu desenvolvimento.

Mozilla taps in-Firefox ads as it searches for more revenue

Mas o Firefox, ou melhor, a Mozilla não é líder.  Nem em browsers, nem em telefones (que recém lançaram e não fez muito diferença pros usuários).  Então não vale a pena receber o ódio dos gladiadores da liberdade.  É preciso ter um significado, mostrar alguém com monstro, como contradição.  É preciso ter um diabo pra existir um deus.

Todos os outros comentários sobre Ubuntu, e que podiam ser pra qualquer outro, caem no caso de factóides.  São apenas meia-verdades contadas pra criar um fato, um caso.  Apenas pra gerar polêmica e buscar atenção.  Não vou comentar mais nenhum, mas da próxima vez que ouvir sobre algo assim, pergunte a si mesmo qual é a licença usada nesse software/produto da Canonical, se o código fonte está disponível, se é usado pela Canonical, pelo kernel (Linux), se é usado por outras distribuições profissionais como RedHat e Suse, e se qualquer usuário poderia optar por remover ou não pelo gerenciador de pacotes.  Se está entre algum desses, factóide na certa.

Devemos lutar pelo Ubuntu?

Acho que não.  Ubuntu não precisa disso ou de qualquer um de nós.  É gerido por uma empresa, e não por uma comunidade.  Como tal, toma suas decisões como melhor convier pra seu negócio.

E se em algum momento o Ubuntu ou a Canonical se sentirem lesados por essas atitudes, tenham certeza que seus advogados agirão.

Eu gosto do Ubuntu pela facilidade de entrada ao mundo de software livre que proporciona às pessoas.  Não é feito pra mim ou pra qualquer um que já use Linux, mas pra quem nunca usou ou experimentou.  Esse tipo de usuários (veja que não me refiro como comunidade, mas usuário) não tem interesse ou conhecimento sobre liberdade.  Não nesse primeiro contato, que é muito importante.

Eu sou fã irrestrito do Debian, mas simplesmente desisti de tentar esse primeiro contato através dele.  Por que?  Debian não é bom?  É bom pra mim.  É ótimo.  Mas toda vez que tentei fazer uma instalação pra amigo, pra convencer a usar, virei um tipo de suporte técnico.  Aliás personal suporte técnico.  E problemas não faltaram.  De upgrade que parou de funcionar ambiente gráfico a modem que não conectava mais na Internet.

Atualmente recomendo usar Ubuntu sem medo.  Se gostar e quiser aprender mais, ensino sobre Debian.  Se achar horroroso e difícil, já abandona ali mesmo.  Ganhei tempo ao invés de perder.

Esse é o discurso que todos deveriam adotar em software livre: inclusão.  Mas ao contrário disso decidimos por ir direto pela segregação.

Incrivelmente alguns realmente acham que esse caminho dará certo.  Eu prefiro concordar com a imagem que o Patola postou num dos grupos que discutiam esse tipo de assunto.  Deixa bem claro quem realmente ganha com a ajuda dos gladiadores da liberdade.

 

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